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Uma interpretação precisa, para um registro necessário



















Uma interpretação precisa, para um registro necessário


Gil Nuno Vaz




Foi exatamente um ano de espera. No final de maio de 97, quando a editora Annablume lançou o livro “O Antropofagismo na Obra Pianística de Gilberto Mendes”, dissertação de mestrado do pianista Antonio Eduardo, escrevi que a publicação merecia ser acompanhada de um disco com as obras analisadas. Seria recomendável não só para músicos e pessoas interessadas no processo da criação musical, mas também como um registro necessário de importantes peças do compositor, a maioria delas inéditas. É importante lembrar que, apesar de Gilberto Mendes tornar-se conhecido, e reconhecido, principalmente pela sua produção experimental, marcada por obras corais, teatros musicais e formações instrumentais diversas, o piano sempre foi a sua referência básica.


A FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo, que havia apoiado a edição do livro, apoiou também a edição do disco. E hoje, com o lançamento do CD AMOR HUMOR e Outros PortosA Música para Piano de Gilberto Mendes, a lacuna é preenchida. No mesmo evento, será também relançado o livro, oferecendo a oportunidade, para quem ainda não conhece, de tomar contato com o estudo de Antonio Eduardo.


A espera valeu a pena. O repertório realiza um percurso que inicia em 1945, no primeiro prelúdio, e vem até o ano passado, com uma peça em homenagem póstuma ao compositor português, também pianista, Jorge Peixinho, falecido em 95. Uma composição com o sugestivo título “Estudo, ex-tudo, eis tudo, pois...!”. É como assistir uma história desenrolando-se no tempo, através das mudanças da linguagem musical. A audição e a leitura conjugadas possibilitam perceber, por exemplo, como um material utilizado de passagem, na Peça para Piano n. 16, de 1959, dedicada a Almeida Prado, torna-se a base de Viva Villa, composta em 1987 para um programa comemorativo dos 100 anos de nascimento de Villa-Lobos.


Além de registrar toda essa produção de Gilberto Mendes, o disco tem ainda o mérito de ser a estréia fonográfica do pianista Antonio Eduardo, numa execução que reflete o seu contato de muitos anos com a obra do compositor, de muitas conversas, a afinidade com o estilo, e o gosto pela pesquisa.


O resultado é uma realização que pode muito bem ser definida com a expressão “na medida certa”: o equilíbrio entre a intenção do compositor, o que a música em si parece pedir, e a percepção pessoal do intérprete. Precisão. As peças do período inspirado em motivos brasileiros, por exemplo, equilibram fluência melódica e rítmica sincopada, sem resvalar, em nenhum momento, para as tentadoras interpretações brejeiras ou românticas. Por outro lado, uma peça rigorosa como “Um estudo? Eisler e Webern caminham nos mares do sul” tem uma interpretação enxuta (sic) altamente emotiva em sua concepção comedida.


Aludindo a um curtíssimo e famoso poema de Oswald de Andrade, o título do disco remete ao caráter antropofágico da obra de Gilberto Mendes, que assimila as mais diversas correntes estéticas e as transforma através de sua linguagem pessoal. E, ao juntar ao poema as palavras “e outros portos”, alarga esse horizonte de influências ao mesmo tempo que contextualiza o ambiente mais imediato do compositor, e do pianista: o porto e as praias de Santos. As ilustrações, da capa e interna, reproduções de quadros de Eliane Mendes, retratam o espírito desse ambiente, “tão santista” como na expressão de Martins Fontes, se não me engano, e ao mesmo tempo tão cosmopolita.

Afora a qualidade artística, das composições e da interpretação, o disco conta ainda com a competência técnica e a experiência de José Luiz da Costa (o Gato), um profissional altamente especializado no registro da música erudita. O encarte traz comentários do pianista e da professora Maria de Lourdes Sekeff, orientadora da dissertação de mestrado que deu origem ao livro. E já que falamos da produção do disco, fica aqui uma observação crítica sobre a omissão do nome do pianista na capa, o que pode entretanto ser entendido como um gesto de reverência ao mestre.

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