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Religiosidade


Há muitas palavras que remetem à crença na existência de uma fonte criadora e reguladora do universo, que transcende a realidade material do mundo físico. A maior parte delas liga-se a grupos específicos, com características próprias do mistério universal.


Uma dessas palavras, Religiosidade, não apenas remete a todos os grupos específicos como os transcende, funcionando como referência genérica e de maior amplitude conceitual.


Por tal condição, ou por uma presumida neutralidade, Religiosidade é certamente a melhor denominação para reflexões mais abrangentes sobre vários dos tópicos e fundamentos estruturais que podem ser imaginados como varetas arquitetônicas desse guarda-chuva linguístico.


Duas varetas desse guarda-chuva podem ser pinçadas para iniciar tais reflexões, em especial por certas implicações quanto à própria palavra escolhida, Religiosidade.


Uma primeira vareta seria a vinculação etimológica com o latim.


Uma re-ligação (religare) que denominaria o sentido de 'ligar novamente", ou "voltar a ligar", a unir, a reatar, o humano com o divino. Ou seja, a recondução do ser humano com o ser divino, seja em concepção monoteísta ou politeísta.


Na prática, essa concepção se afirma principalmente sob outra origem etimológica considerada, a de re-leitura (relegere), em que surgem as religiões, diferentes crenças constituídas como instituições confessionais de diversos matizes. É razoável estimar, a partir dos preceitos das religiões mais praticadas pela humanidade, que quase a totalidade delas, embora tendo como cenário de fundo a crença no sobrenatural, a transcendência do humano no divino, do profano ao sagrado, estabelecem códigos de conduta e rituais de devoção fortemente apoiados em valores morais como balizas do bem e do mal. E que se tornam guias para os fiéis se adequarem à vontade dos deuses que veneram. A implicação politeísta da frase anterior tem a intenção de aludir à etimologia grega da palavra religião, com a marcante diferença de que os deuses são humanos imortais, enquanto o deus monoteísta (judaico-cristão) gozaria da condição de eterno.


A outra vareta seria uma concepção apoiada em conceitos das disciplinas que estudam as questões de comunicação e significação, vale dizer, de ordem semiótica. É essa segunda vareta que vai ser utilizada como lente de observação para as abordagens do universo da religiosidade. Até porque a concepção semiótica abrange a anterior, de fundo linguístico. E tem como questão principal a origem do universo, um eventual momento em que o universo teria sido criado, sem privilegiar aspectos normalmente destacados e assumidos como fundamentais nas concepções etimológicas da religiosidade, que é o caráter de volição do divino (a vontade dos deuses). Não que se deixe de lado a questão volitiva, mas sem conferir a ela posição central na emergência do universo.


Ponto de partida da reflexão: se "religiosidade", tanto a palavra em si como as várias definições que procuram circunscrever os conceitos envolvidos nesse termo, é um signo, a questão primeira a ser respondida é "o que é signo" e "que tipo de signo é religiosidade".


Consideramos aqui que signos são as coisas do mundo atuando entre si como elementos de percepção da realidade. Vale dizer, as próprias coisas do mundo percebendo-se a si mesmas e às outras. Consideramos ainda a existência de capacidades semiósicas diferenciadas, isto é, de diferentes acuidades nas configurações perceptivas de cada coisa do mundo. O que permite a algumas coisas percepções mais detalhadas e sutis do que a outras coisas. E consideramos, adicionalmente, que tal diversidade pode ser rastreada, e eventualmente mapeada, em termos de uma categorização, ou tipologia, de signos.


Assim, uma caracterização do signo religioso, ou de qualquer outro signo, envolve entender o contexto de emergência e de atuação desse signo. Tarefa que pode ser conduzida pela busca de respostas às perguntas heurísticas fundamentais:


  • o que é o signo religioso, ou da religiosidade (caracterização genérica),

  • qual é o signo religioso em consideração (caracterização específica, diferencial a ser destacado de uma unidade contida no genérico: cristianismo, budismo, islamismo etc, incluindo desmembramentos),

  • quando e onde se manifesta o signo religioso (caracterização espaço-temporal do signo, a condição de ser enquadrado geográfica e cronologicamente),

  • quem produziu o signo religioso (caracterização da fonte geradora, a origem do signo: líder religioso, fundador da crença),

  • por que é ou está, ou seja, por que existe o signo religioso (caracterização da intenção com que foi criado, de seu propósito, do que pretende instituir, seus valores), e

  • como o signo foi criado e processado nas repercussões da semiose (caracterização das relações de causa e efeito que se sucedem no processo evolutivo das coisas no mundo, no caso, as crenças religiosas).


Não é intenção aqui avançar por todas essas questões, o que suscitaria uma multiplicidade de aspectos, mas apenas abordar o aspecto mais geral implicado na escolha da palavra "religiosidade": a origem.


Como resultado dessa abordagem, uma interpretação possível da religiosidade enquanto signo levaria a caracterizá-la primordialmente como uma percepção da origem das coisas no mundo, isto é, do próprio mundo, do universo. E, dentro da capacidade semiósica que define o ser humano, limitada pelo horizonte do espaço-tempo, da entropia e de concepções ditadas pela relação de causa e efeito, o cerne da questão implica buscar uma resposta para a pergunta sobre quem criou (e por que) criou as coisas, o mundo. Conforme já advertido, tratado aqui independentemente das questões sobre como, onde e quando.


Sendo o signo uma interface entre a percepção e a realidade das coisas do mundo, podemos representá-las como faces do mundo. A realidade sendo o conjunto de coisas enquanto objetos da percepção, e a percepção sendo o conjunto de coisas atuando na interpretação de si mesmas e das demais coisas. O vínculo que possibilita a interface é o signo.


Considerando que a capacidade semiósica é resultante da configuração perceptiva de cada coisa no mundo, seria necessário fazer um mapeamento dos diversos tipos, ou classes, de signos possíveis, para então identificar qual a configuração sígnica operacionalizável por uma determinada coisa do mundo. Como estamos falando de religiosidade, em princípio seria identificar a rede sígnica que configura a percepção do ser humano.


Entre os diversos modelos semióticos existentes, adota-se aqui a concepção teórica desenvolvida por Charles Sanders Peirce que, por ser de base fenomenológica, parece ser a mais adequada para a abordagem pretendida. Sem entrar por ora nos conceitos fundamentais dessa teoria, toma-se como referência de tipologia a classificação de signos proposta por Charles Sanders Peirce (1839-1914), especialmente o mapeamento básico de suas 10 principais classes.


Nessa disposição das classes de signo, a religiosidade é determinada por uma progressão que vai da terceira classe (recorrência) à oitava (acepção), percurso intermediado pela sexta classe (marca da fonte, da origem). Para ilustrar o processo sígnico sobre o qual é erigida a religiosidade, vamos considerar, como exemplo de um signo de recorrência, a constatação de um nascimento, o surgimento de um corpo. Como signo de marca, a constatação de um corpo emergindo de outro corpo (origem), havendo entre ambos um vínculo de origem. No limite dessa classe de marca, os nomes individuais surgem para distinguir as identidades, de geradores e gerados. Como signo de acepção, a constatação de ser um fato característico da reprodução biológica, firmando-se a partir daí o conceito de geração, funções de ascendência e descendência (pais e filhos).


A questão religiosa surge diante da perplexidade de que aquele fato implica regressivamente uma questão fundamental: a origem da cadeia reprodutiva. A falta de uma explicação com base nos vínculos de causa e efeito leva à imaginação de um ser diferenciado, ao qual se dá um nome ("eu sou o que sou"... Deus etc) e uma disposição volitiva divina, o ato da criação ("... e viu que era bom"), conforme a versão bíblica. Uma crença baseada em vestígios (as coisas do mundo, a realidade) que permitem percebem a marca do criador (o princípio do cosmos, a organização da natureza) e, à falta de uma causa eficiente original, a vontade divina.



Não se entra aqui em detalhes nos meandros dessa classificação, a serem expostos em outros lançamentos de Cantos Correntes. Afinal, o que representa essa linha de força em cruzamento com outras linhas de força, nos vários estratos da rede de signos, transcende o campo da religiosidade, e seria uma atitude reducionista desenvolver a abordagem tendo como motivação única a questão religiosa.









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