O Auditor guardou os papéis, recolheu os objetos espalhados em cima da mesa, caneta, lápis, borracha, grampos, ajeitando tudo em ordem, nos seus devidos lugares e recipientes, como de hábito, rotina diária, fechou a escrivaninha, levantou-se da cadeira espreguiçando, pensando já na cama, antevendo o corpo estirado no colchão, o sono batendo às suas janelas. Dirigiu-se à escada e, mal se apoiou no corrimão, percebeu um envelope grande sobre o aparador. Desceu os poucos degraus que havia subido a muito custo, e esticou a mão. O envelope não estava lacrado, deixando entrever um documento espesso lá dentro, algo como um caderno, ou relatório. Abrindo, deparou-se com um volume gráfico bastante familiar à sua vida profissional: um livro contábil de Contas Correntes.
De imediato, um detalhe chamou sua atenção. Do lado direito, saindo direto da textura da capa, a expressão manuscrita "Letras de Músicas" projetava-se sobre a etiqueta de identificação, finalizando com a palavra Músicas estendendo-se por cima do título do livro. Detendo-se com mais atenção na etiqueta, reparou em três nomes que denunciavam a origem escolar do documento: L. S. Paulo (Liceu São Paulo), um tal professor Corrêa, e a aluna Isaura Henriques. Curioso, abriu o livro e começou a folhear. Ali mesmo, em pé no primeiro degrau da escada, começou a folhear o livro. Página após página, letras de canções manuscritas a lápis cobriam o desenho gráfico da escrita fiscal. Por sobre colunas traçadas para perfilar números relativos a débitos e créditos, e frios textos descritivos de operações comerciais, espalhavam-se letras românticas, líricas, cômicas e bucólicas, de sambas, valsas, maxixes, marchas e outros gêneros musicais que inundavam as transmissões radiofônicas dos anos trinta, quarenta, cinquenta e até os anos sessenta do século vinte. À medida em que as folhas iam sendo viradas, uma equação começava a se desenhar em sua cabeça: Contas Correntes + Letras de Músicas = Cantos Correntes. A fórmula parecia indicar a possibilidade de extrair um curso líquido de arte a partir de insumos brutos das relações econômicas, a criação de uma correnteza fluida e livre. Mais o avanço de algumas páginas, cai de repente do meio do livro uma pequena brochura, cuja capa ostenta o título Plano de Cantos. Uma desconfiança se instaura, de que não se trata apenas de meros trocadilhos, mas uma transposição premeditada do campo das contas para o campo dos cantos. Decide então voltar à cadeira onde sentara até há pouco, colocando o livro e a brochura sobre a mesa à sua frente. Fitando ora o livro, ora a brochura, começou a refletir sobre o que poderia estar em curso nessas recentes descobertas. Em dado momento, sua atenção fixa-se no Plano de Cantos. Toda obra tem um plano, pensou. Não que o plano preceda a obra, necessariamente. O plano pode ser concebido, construído, também à medida em que a obra vai se realizando. De qualquer modo, há um vislumbre inicial, ainda que quase inconsciente, que guia a construção da obra. Dizem que a vida, como obra, obedece a um plano. E que, no final, cada um tem que confrontar sua obra com o plano. Ajustar as contas. É como na contabilidade. Os lançamentos são feitos conforme um preestabelecido plano de contas. Se há um fluxo que corre da vida para a arte e, em reverso, um contrafluxo que corre da arte para a vida, talvez esta obra que a vida imita obedeça a um outro tipo de plano, paralelo: um plano de cantos. E se o fluxo da vida para a arte tem seu registro no livro contábil das Contas Correntes, por que não registrar o fluxo da arte para a vida em um livro cantável paralelo, um Cantos Correntes?
Um guarda-livros - contador/cantador - registra passagens de sua vida em lançamentos, assentos contábeis/cantáveis, breves contos/cantos ditados, entre muitos, por um ente atemporal, o anjo do guarda-livros. Questões sobre a autoria de obras artísticas lançadas nos livros que levem um auditor a investigar todos os comprovantes dos lançamentos: documentos impressos, sonoros e visuais. Diante de lançamentos incompletos ou inacabados, e de comprovantes ausentes ou extraviados, um artífice de múltiplos ofícios e habilidades especula sobre os vazios da escrita, projetando realidades potenciais que os indícios e vestígios possibilitam vislumbrar. Desenvolve-se uma busca interminável em que eles se percebem cada vez mais limitados para descobrir as origens do que procuram, que se estendem por dimensões infinitas do espaço e do tempo, tanto no micro como no macrocosmos, tanto para o passado como para o futuro.
Embora siga um plano de cantos, a trama pode ser explorada a partir de qualquer nome, tema ou título, acessados respectivamente por três raizes de busca: Interlocutores, Universos e Obras. O enredo se articula em sete fluxos da memória do guarda-livros, associados aos sete principais canais da cidade de Santos, antecedidos por uma introdução (Canal Zero), e sucedidos por uma coda (Canal N).
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