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O Guarda-Livros


Basta! Vais estudar Contabilidade! O som é o da língua original, castiça. Trabalhar de dia, quem sabe no comércio, estudar de noite. Sem os números do impensável científico, e sim com as contas do técnico. Sem as letras do indicado clássico, e sim com os (guarda) livros do técnico. E ao largo da propensão artística de um teste de orientação vocacional.


Teu novo norte vem assim em bom português, com o sotaque do Norte. Tu vai estudar Contabilidade, reza a sentença paterna. Começam as aulas no já bem conhecido prédio número 99 da Rangel Pestana, esquina da Júlio Conceição.


E tu tá lá, em frente. Tu pára antes de entrar, e observa o velho edifício desde a larga calçada central, sob a qual ficou escondido o Canal Um. Tu faz o mesmo também na saída, enquanto espera passar o bonde 17 (ou 27), entre os postes de iluminação ao longo da via. O mesmo tipo de luminária que se estende pelos jardins da orla da praia. Cenário que te lembra dos sombrios filmes em branco e preto, de ambientes esfumaçados como do fog londrino. Os filmes noir da primeira parte das sessões duplas do cinema.


Clima de cinema, a memória começa a desenrolar o carretel da tua história, em rolos misturados de pensamentos celulóides desordenados. E te leva direto para dentro da sala de aula, primeira aula do teu primeiro curso noturno.


Entra uma figura estranha. Teu professor de contabilidade, um dos muitos guarda-livros da cidade. Tu nem lembra o nome dele. Fica andando para cá e para lá em frente ao quadro negro, numa mortiça sala de aula no primeiro andar do prédio . Sempre com o jaleco branco, óculos escuros, giz na mão. De repente, dirige-se ao quadro e escreve: Mercadorias a Caixa, Veículos e Semoventes a Caixa. E explica, com uma cavernosa voz surda: tudo que entra deve, tudo que sai tem haver. Quem recebe deve, quem paga tem haver. Tem a ver com o quê?


Aos poucos, a lição secular do religioso italiano Luca Paccioli vai entrando na tua cabeça. É uma das tuas muitas dívidas pela vida afora, no balanço das partidas dobradas engendradas de passagem na matemática cabeça desse contemporâneo de Da Vinci.


Aos poucos também a simplicidade do contrato contábil vai se mostrando fértil, nos infinitos desdobramentos das partidas dobradas. Alguns desses desdobramentos, e não os menos importantes, tu só vai conhecer anos mais tarde, bem mais tarde do que a noite em que tu te formou e recebeu o canudo que te certificou técnico em contabilidade.

Mas, antes disso, tu vai passar por um marcante estorno nos lançamentos de tua própria vida: a desistência da opção profissional pela contabilidade. Tu decide cancelar teu registro profissional de técnico em contabilidade. Motivo: o sentimento de que ser guarda-livros te tornaria um ser fadado à insatisfação e, provavelmente, à infelicidade. Isso vem depois dos estudos de economia, algo que também passaria por semelhante estorno.


E te leva a outros campos de estudos: artes, cultura, linguagens. A vida segue em frente, e tu te convence que tomou a decisão certa. Afinal, tu não tem mesmo nada a ver com o guarda-livros, teu perfil não é o de um contador. De um cantador, talvez.


Ledo engano! Os livros continuam a te aguardar. O cantador não elide o contador. Cantabile, contabile, convivem em conexões mais amplas e complexas. Na divisa do horizonte das contas, a grande dívida da contabilidade divina: o pecado, eterno haver do Criador credor, a ser ressarcido em infinitas prestações pelos devedores, almas apenadas por inamortizáveis parcelas de contas, por todo o tempo de sua imortalidade. Não é disso que falam e ecoam os escritores e reescritores de conta e tempo? De uma imaginável autoria desconhecida a nomes declinados ao longo de três séculos consecutivos? Um frei do século 17, outro do século 18, e um médico do século 19? Partidas desdobradas num inex-fólio sem fim.



Não é tal e qual, ou quase, o que fazem com o meu texto, no saguão do Museu de Imagens e de Sombras? E se as palavras não se perdem, ou se alteram, é porque não há interrupção entre o texto desfeito e o que é reescrito imediatamente, no moto perpétuo verbal dos Sete Fluxos da Memória.




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