A controversa existência de um ser criador do universo é, como em todos os povos, um dos temas capitais que suscita intermináveis reflexões e profundos debates na comunidade do Engenho.
Para a perspectiva adotada pelos representantes da agremiação Confraria Anônima Olaria Santense, uma questão provocativa foi contraposta a partir da concepção do que entre eles recebe o nome de o Grande Arquiteto do Universo.
E o cerne do questionamento diz respeito à incapacidade humana de imaginar algo que não seja efeito, isto é, que não tenha causa. Sendo o grande arquiteto a causa inaugural.
E se a arquitetura existir por si e em si?
O GRANDE ARQUITEXTO DO UNIVERSO
- Você é um dos nossos. Só está faltando o avental.
A fala (ou a bala?) só não foi à queima-roupa porque já veio empapada em saliva. Do outro lado da mesa, teu fato não foi afetado. Os perdigotos salvaram a integridade do tecido.
Mas tão inesperada quanto o projétil verbal foi a tua resposta, em modo pergunta:
- Um garçom?
Quase instantaneamente tu considerou que, sendo o interlocutor o dono do bar, deveria assumir algo mais compatível hierarquicamente:
- Um cozinheiro? Ou, quem sabe, um chef?
Diante da saída sonsa, o dono do bar, mesmo sem captar a ironia, não te deu o braço a torcer, na investida ao modo de João Sem Braço:
- Você sabe bem do que falo. E o que faço com isso é um convite. Nossa confraria está aberta para te receber.
Não era a primeira vez que te convidavam a fazer parte da sociedade. Misto de organização social, recreativa, esportiva, profissional e religiosa. O Confraria Anônima Olaria Santense.
- Como escapar, respeitosamente e sem ferir melindres, do C.A.O.S. de uma confraria?, tu pensou.
A estratégia te veio tão rápida quanto a resposta anterior.
- Fico honrado com o convite, tu agradeceu de pronto, mas não sou muito afim a confrarias, tu alertou adrede, mas nem é disso que se trata, tu preparou a justificativa para a declinação em progresso.
O dono de bar, aguardando o desfecho, nem pisca, o olhar atônito.
- A questão central é que, segundo dizem, há um requisito indispensável para a admissão de associados.
- Sim, não importando a crença religiosa, é imprescindível acreditar na existência de um supremo criador do mundo, um grande construtor da realidade. O ser que arquitetou tudo o que há.
- Pois então, aí está, tu completou. Não possuo tal convicção. Acredito, sim, na arquitetura. Mas tenho dúvidas quanto à existência do arquiteto. Creio que isso me desqualifica ao ingresso na sociedade.
A conversa poderia ter parado por aí. Mas o dono do bar não conseguia aceitar a recusa, cujo fundamento não lhe parecia razoável.
- Mas como se pode imaginar a existência de uma criatura sem a existência de um criador?
- Difícil de entender, não?
- Impossível.
- Tens um tempinho?, tu perguntou, cedendo à insistência, em nome da amizade.
- Até o bar fechar. Até o último freguês. Tu.
- Muito bem, então. Vamos começar a questão pelo "X".
- O xis da questão?
- O xis de uma questão bem especial, que aponta para uma incógnita infinita. Vamos começar introduzindo o xis no verbo, na palavra, do arquiteto. Afinal, não diz certo livro que "no princípio era o verbo"?
- Tu deves saber bem disso. Afinal, és o meu guarda-livros.
- Bom começo, pois. De modo que, em vez de arquiteto de tudo o que há, do universo enfim, vamos chamá-lo de arquiteXto. Pensar o universo não como uma arquitetura, mas como um arquitexto, uma arquitextura verbal. Pode ser assim?
- Se puder traduzir...
- Se o sentido da palavra "verbo", aquele que estava no princípio, é o de "ação", temos aí um vínculo entre um elemento simbólico (o verbo, a palavra) e um elemento concreto, efetivo (a ação, uma ocorrência). O arquitexto que estabelece uma conexão com a arquitetura, formando a arquitextura.
- Parece coisa mística...
- As aparências enganam... ouça isso enquanto fazemos uma pausa para um gole. Veja, leia e ouça.
- Acabas de confirmar o que achei. Místico.
- Pois... assim é, se te parece. Ou tal qual observas, reza a quântica.
Tu percebeu, sem dúvida, que o dono do bar não captou tua gracinha. Tu poderia ter cortado aí a conversa. Mas tu te sentia um tanto disposto, como na já remota atividade professoral, e, ainda que a probabilidade de sucesso pedagógico fosse pífia, tu resolveu continuar, talvez por puro gosto, simples deleite. E por que não, tu pensou, usar mão de representações geométricas?
- Posso usar um guardanapo, para fazer uns rabiscos?
O dono do bar te estendeu um maço de guarda-napos.
- À vontade...
- Obrigado, tu agradeceu e, de pronto, sacou tua caneta do bolso e começou a traçar uma linha, atravessando em sentido diagonal o formato quadrado do papel. - Aqui está...
- E...?
- Percebes que a linha é tracejada, que não é contínua? Agora, imagina que cada traço dessa linha é a realidade à nossa volta. O espaço em que estamos neste lapso de tempo.
- Sei...
- Sabes? Ótimo. Entretanto, como o traço em que estamos não está conectado a outros traços, nem o anterior, nem o posterior, nossa realidade presente está isolada, sem passado, sem futuro. Ou seja, sem memória. Com isso, não estamos aqui, efetivamente. Apenas, somos. Nossa consciência de nós mesmos é somente pura sensação.
Dito isto, tu faz uma pausa e fica olhando teu interlocutor (!) à espera de alguma reação. Em resposta (!) ele fica te olhando aparentemente à espera de que tu continue.
- Mas... como ter a sensação, pura sensação, seja lá o que isso signifique, de algo que não tem passado... ou seja, sem que haja memória. Sem diferenças de qualidade que se dê a comparações?
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