
Artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, em 4 de março de 1984, sobre a escassez de repertório criado originalmente para interpretação vocal e coral a cappella na música popular brasileira.
Em artigo anterior nesta página, falei sobre a crescente inclusão de canções da MPB no repertório dos grupos corais (através de arranjos em geral pouco convincentes) e sobre a evidente conclusão de que ninguém faz música popular específica para coro, isto é, pensada especialemente para os recursos de interpretação desses conjuntos.
Os compositores que se dedicam a escrever obras corais habitualmente apresentam peças eruditas ou arranjos (quase sempre de temas folclóricos ou, o que nos interessa no momento, de canções populares). Música popular original, nunca.
Mas a ausência de preocupação em explorar nesse campo o material coral não é sentida apenas no pessoal chegado aos grupos, embora se torne mais penoso constatá-lo no próprio meio. Também entre os autores de MPB ninguém parece ligar o mínimo, a não ser para backing vocals, recheios pomposos de orqujestra e coral etc. O que dizer então de compor música para coro a cappella, que é a situação mais comum em que se exibem os coros!
São poucos os casos na MPB de composições somente com vozes, sem qualquer apoio instrumental. E referem-se, via de regra, a quartetos e pequenos agrupamentos, e não propriamente corais. Apesar disso, vale a pena listar os mais significativos, entendendo-os como possíveis embriões, talvez, de uma música popular coral.
Em 1964, o conjunto Os Cariocas gravava Insensatez, de Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, em quatro vozes sem acompanhamento, numa das mais arrojadas e criativas interpretações da música popular. Em 1972, o compositor Walter Franco surpreendia a platéia do VII FIC com “Cabeça”, que justapunha diversas intervenções da voz do autor, previamente registradas em fita, à execução ao vivo, num contorcionismo sonoro que procurava, talvez, introduzir minhocas musicais em cabeças por fazer.
Em 1975, o MPB-4 incluía no seu disco comemorativo dos seus 10 anos de carreira o “Canto Triste”, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes, numa versão exclusivamente vocal que lembrava, no fundo, os arranjos de música popular para grupos corais, a que nos referimos acima. No mesmo ano, Luiz Gonzaga Jr. mostrava a interessante “Geraldinos e Arquibaldos”, em que a ginga vocal, bola em jogo pelo pontapé da letra, preenchia com tranqüilidade o campo todo do samba. Uma batucada verbal, simples mas corretamente conduzida, nascia da prosódia natural do texto.
Nesse mesmo ano, Gal Costa inseria como última faixa do disco “Fantasia” a canão “Estrela Estrela”, de Vitor Ramil, contando com a colaboração de Zéluiz e mais algumas vozes fazendo a base harmônica. E em outubro passado apresentou-se no programa “A Fábrica do Som”, da TV Cultura, o grupo Copos e Bocas, com a música “Menino”, um balançado maxixe exclusivamente para vozes que, além da plasticidade sonora e da ambientação infantil que sugeriam, valorizavam sobremaneira certas passagens do texto.
E a relação não vai muito além disso. Contam-se nos dedos as canções populares que exploram o som puramente vocal, a cappella. Talvez os compositores não vejam sentido em fazer música só para vozes num tempo de plena efervescência do som eletrônico. Afinal de contas, como recusar o uso de filtros, moduladores, distorcedores, as vastas possibilidades do sintetizador? E a sedução de detalhes e efeitos plásticos, ou exóticos, criados pela multiplicidade percussiva que alargou os horizontes tradicionais da bateria? Como ficar com a voz humana, diante de tudo isso?
Um caso de ignorância, evidentemente, de grande desconhecimento sobre os recursos que significam as vozes de um grupo coral. A audição atenta de algumas obras fora do âmbito da canção popular – eruditas ou folclóricas – revelaria incríveis possbilidades: a textura eletrônica que Roberto Martins explora num trecho de “Alpha Musticum Ômega”, e que fez também Jorge Antunes em “Cromorfonética”. Ou a entoação de notas alternadas por duas virgens do Burundi, país centro-africano, sonoridade que mais parece um instrumento de sopro, parente distante do saxofone. Quanto a efeitos percussivos, o campo de investigação não é menor, como mostram por exemplo a música de Gonzaguinha e as realizações do Céu da Boca. Há muitas dicas musicais que saem pelos cantos da boca.
Não há explicação razoável, portanto, a não ser o preconceito ou a falta de imaginação – para a subestimação do material coral. Na verdade o que se percebe é uma incoerência: enquanto se esbraveja por aí contra a padronização sonora dos discos pasteureofônicos da indústria fonográfica, muitos caminhos que poderiam significar riqueza de variedade, alternativas criativas, não são trilhados por falta de coragem estética. Há muita voz de cabeça, muito falsete. Não faria mal, para contrabalançar, um pouco de voz de peito.


O texto desse artigo, bem como de outro, intitulado Os Cantos (Musicais) da Boca, publicado no jornal A Tribuna, de Santos, tomam por base o roteiro de uma crônica radiofônica produzida no ano anterior, e apresentada na Rádio A Tribuna AM, de Santos, no programa Mesa de Som, que era transmitido às terças-feiras, das 20h30 às 22h00 horas. A seguir, uma montagem parcial do áudio do programa, dedicada ao operador técnico, Joel de Azevedo, que atuou praticamente em todos os programas.
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