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Criança feliz, que vive a cantar... e a dançar


Artigo publicado no jornal A Tribuna, de Santos, em 12/10/1983, na coluna A Onda é Rádio.


CRIANÇA FELIZ, QUE VIVE A CANTAR... E A DANÇAR


Criança não tem recessão, é um organismo em crescimento contínuo, um impulso vital que nenhum arrocho consegue conter. Criança está por fora de problemas com dívida externa, suas necessidades vêm de dentro, sede de conhecimento, fome de novidade. Um potencial de consumo que não se pode desconsiderar, principalmente em tempos de crise. Embora sem recursos próprios, a criança apresenta incrível capacidade de obtê-los, através de um inocente e habilidoso jogo de persuasão, mesmo à custa de desvios no orçamento familiar.

A indústria do disco, cujos preços vêm afastando o público das lojas (os reajustes vão ser mensais agora, com a perspectiva de ultrapassar os 5 mil cruzeiros até o final do ano), sabe muito bem disso. E entrou para valer, disposta a conquistar definitivamente o mercado infantil. Tática para recuperar em parte a evasão da demanda: o adulto renuncia ao último lançamento do seu intérprete ou autor favoritos, por motivos econômicos, mas aperta o cinto por motivos emocionais, para atender ao apelo do filho que pede insistentemente a trilha do novo musical da televisão.

A TV é a peça chave da estratégia: um musical ultra-sofisticado, cheio de cores e movimentos, visualização maravilhosa do mundo de fantasia da criança, abre as portas dos lares para a colocação do atrativo produto, o disco.

Este, previamente depurado de elementos complexos que possam dificultar a sua aceitação, obedece a uma determinação básica: nada de historinhas com diálogos entremeados de músicas, a exemplo das produções clássicas do setor. Apenas um texto de introdução, uma fala breve sobre fundo musical para conferir certa unidade ao conjunto, e uma seqüência de canções interpretadas por artistas de evidência na MPB.

O repertório, música para dançar, pois criança tem mais é que queimar energia. E ao invés de cantigas de roda e tradicionais danças folclóricas, canções especialmente compostas por grandes autores.

A fórmula do sucesso foi descoberta com “A Arca de Noé” e o resultado foi tão espetacular que deu origem a seqüências e desdobramentos: primeiro veio A Arca de Noé II; o MPB-4, com a popularidade da faixa O Pato, da Arca de Noé, partiu para um disco individual (Adivinha o que é); e o Lindo Balão Azul, de Guilherme Arantes, no Pirlimpimpim, rendeu os filhotes do Balão Mágico.

Com o Pirlimpimpim e o Plunct! Plact! Zum! a equação foi “aperfeiçoada”, no sentido de homogeneizar cada vez mais o repertório dançante, para criar melhores condições ainda de receptividade. Surgiu então a predominância da batida da música pop. Compare esses dois discos com os LPs da Arca de Noé: a quase totalidade das faixas dos novos discos ostenta o rítmo bate-estaca que a gente está habituada a ouvir nas rádios FM.

E aí se chega a um ponto que revela o grau crítico da nossa colonização cultural, a desvalorização que vamos aceitando passivamente: a variedade, que era objeto de preocupações no começo, entra agora por conta do pitoresco, do típico. O samba de Dona Ivone Lara cai bem quando se trata da Tia Nastácia, e o balanço de Jorge Ben se presta para caracterizar as peraltices do Saci. Isto é, dentro do contexto de uma obra brasileira, a criação de Monteiro Lobato, a nossa música serve para dar colorido local à universalidade neutra da massa sonora indistinta e pastosa.

Uma das mais recentes produções, a Casa de Brinquedos (cujo musical a Globo transmitiu nesta Semana da Criança, além de A Turma do Pererê, escrita por Ziraldo), parece ter produrado recuperar a variedade, embora os resultados sejam bastante inferiores aos da Arca de Noé. Mas já é alguma coisa, que se opõe à detestável invasão do universo infantil pela padronização estética que a indústria cultural impõe aos meios de comunicação.

Quanto à fórmula em si, não houve diferença essencial em relação aos discos anteriores, apesar da intenção manifestada pelo autor, Toquinho, de fugir ao comum da maioria dos discos infantis, que nada exigem das crianças a não ser que dancem e cantem. Como as outras produções, Casa de Brinquedos se limita a explorar o veio mais fácil do filão, que é o repertório orientado basicamente para dançar, ambientar salões de festinhas.

Para que investir em historinhas e coisas afins, que tradicionalmente apresentam resultados modestos, à única exceção talvez de Os Saltimbancos, a adaptação de Chico Buarque para a obra de Sérgio Bardoti e Luiz Enriquez? O retorno tem que ser imediato a partir de um investimento muito bem esquematizado: lançamento em grande escala, cujo impulso inicial é suficiente para pôr o produto em circulação ampla, exigindo apenas um reforço eventual que é dado pela simples e barata reexibição do musical na TV.

Produções de maior complexidade normalmente requerem acompanhamento e divulgação constantes, pelo próprio tipo de comportamento ativo e participante que exigem das crianças, dos pais e educadores. Com isso, os resultados tornam-se desproporcionais aos investimentos e a tendência é o desaparecimento. Foi o que aconteceu recentemente com a coleção de estorinhas infantis TABA, da Abril, que consistia de fascículos com a história ilustrada num livrinho e dramatizada num disco, além de sugestões para a montagem de um teatrinho. Chegando ao número 40, a produtora resolveu estancar a produção por algum tempo, dizendo que ele voltará “em breve”.

Mas, felizmente, tem sempre gente que teima em trilhar esses caminhos ainda virgens, estradas não pavimentadas. Entre os vários selos que a produtora independente Lira Paulistana criou em sua associação com a gravadora Continental, está previsto um específico para o público infantil. Dizem que o grupo Rumo possui um trabalho interessante nesse campo, pelo fato de parte de seus integrantes desempenhar atividades educacionais.

Aguardemos, para ver se a música independente vai constituir uma alternativa também nesse setor. E trazendo, quem sabe, criações que instiguem melhor o extraordinário mundo de imaginação da criança, que não se resume ao salão de festinhas para o qual a atual produção parece se voltar exclusivamente.





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