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Contabile Ma Non Troppo


"Devo à conjunção de um espelho e de uma enciclopédia a descoberta de Uqbar. (...) Bioy Casares jantara comigo naquela noite e demorou-nos uma vasta polêmica sobre a elaboração de um romance na primeira pessoa, cujo narrador omitisse ou desfigurasse os fatos e incorresse em diversas contradições... Do fundo remoto do corredor, o espelho nos espreitava. Descobrimos (na noite alta esta descoberta é inevitável) que os espelhos têm algo de monstruoso. Então Bioy Casares recordou que um dos heresiarcas de Uqbar declarara que os espelhos..." (Jorge Luís Borges, em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius)

Quando te ocorreu a ideia de refletir sobre teus atos?! Não preciso te contar quando. Só te lembro que foi em circunstância semelhante à descrita por Borges e com consequências semelhantes às imaginadas por ele. Semelhantes, mas não idênticas. Tu estava, também, diante de um espelho, mas sozinho, e o espelho não te olhava do fundo de um corredor. Bem à tua frente, ele te refletia em outra realidade. E te levou a pensar numa narrativa na segunda pessoa, e não na primeira. Contada pelo reflexo, uma fala que projetasse o mundo em palavras, sons e imagens, quiçá cheiros e texturas, com todas as deformações que o espelho provoca, a começar pelo inverso das posições. Algo próximo à verdade ou, pelo menos, tangendo o provável, em alguns casos apenas o verossímil, e muitas vezes nem crível. Na conjunção entre espelho e enciclopédia que também te acometeu, tornou-se tua peculiaridade a natureza dos livros que acorreram à mente. Era uma enciclopéda contábil, constando na capa e na lombada dos tomos títulos como Borrador, Contas Correntes, Razão, Diário. Cada um deles apresentava ordenação própria, em numeração cardinal, seguida do exercício ou período no qual os atos, fatos, feitos e coisas eram registrados. Avançando a intuição, teus pensamentos reflexos começaram a ganhar o formato, ou melhor, o espírito de lançamentos. Algo que tu aprendeu, com assombro, no curso técnico-comercial. Quando, ante teu espanto e admiração, o professor te ensinou o método das partidas dobradas. A invenção simples e justa de um religioso da renascença, Fra Luca Pacciolo, revelando a essência dos vínculos entre as coisas e o mundo. Todo ato implica relação entre um devedor e um credor. Um deve, outro tem haver. Jogo imemorial das relações humanas. Mais longe, das relações universais. Causa e efeito. Desde então, como guarda-livros de teus próprios atos, tu começou a pensar em tuas reflexões como lançamentos. Como surgiu esse poema, por que tu compôs essa música, o que te levou a captar aquela imagem, a traçar aquele desenho, a filmar essa cena? As reflexões viraram então registros contábeis, registros cantáveis. Em itálico trocadilho com a mística do seu inventor, os lançamentos passaram de contabile a cantabile, em outro registro. E um dos livros da enciclopédia, Contas Correntes, em metáfora poética por um simples anagrama, batizou o conjunto: Cantos Correntes.


Afinal, como ilustra e sugere um grafito do poeta José Paulo Paes, as escritas contábeis da realidade admitem as mais inimagináveis variações:

Neste lugar solitário faz a conta mais doída em lançamentos diários a soma de sua vida. (Grafito, José Paulo Paes)


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