Em algum dia do ano em que foram dados os primeiros passos de seres humanos na Lua, Carlos Alberto Alves Novaes foi admitido para trabalhar no mesmo setor administrativo da empresa em que eu ingressara há cerca de um ano. Funções burocráticas, daquelas para as quais a breve pausa do cafezinho cumpre a estratégica missão de contornar a monotonia das horas que se arrastam vagarosas pela jornada diária.
Foi numa dessas paradas que o recém-contratado colega de trabalho começou a se tornar ótimo interlocutor sobre os mais variados assuntos. E entre muitas áreas de interesse comum, de preferências cinematográficas a curiosidades científicas, a música era a mais destacada, com ênfase no gosto comum pela composição. Ele me mostrou algumas canções de sua autoria, música e letra, gravando-as em fita cassete, registro acessível na época e do qual me entregou uma cópia.
Chegamos a realizar duas parcerias. Na primeira, iniciativa dele, sugeriu que eu escrevesse uma letra sobre a sensação de quietude no espaço, motivado pelo recente voo da Apollo-11 à Lua, e pela precisão científica dos silenciosos movimentos das naves espaciais no filme 2001, de Stanley Kubrick. De posse da letra (em inglês, que lhe parecia mais conforme às referências), escrita com certa intenção jocosa e sem muita preocupação com a potencial musicalidade prosódica do texto, ele voltou com uma melodia que me agradou muito, interessante, desenvolta. A canção, que levou a palavra QUIET como título, foi gravada, voz e violão, com o recurso doméstico da fita cassete e assim ficou registrada.
A segunda parceria foi uma conjugação de duas canções, a ser dedicada a uma querida colega de trabalho que, grávida, iria se desligar da empresa para cuidar do filho. Eu escrevi um acalanto a duas vozes, com acompanhamento ao piano, em que Carlos modulou o acorde final para, na sequência, passar à sua canção. A ideia era registrar em fita e oferecer à nossa colega no seu último dia de trabalho. Como precisávamos de um local com piano, e de mais uma voz, outro colega, que cantava e tinha piano em casa, ofereceu sua residência para concretizar o plano. A fita, original, foi entregue conforme planejado e, provavelmente por descuido, por ter sido gravada muito em cima, não se fez cópia. A canção dele se perdeu na memória. A minha, escrita, resistiu ao tempo, e ainda chegou a ser incorporada, de diversos modos, em outras composições.
Houve ainda uma terceira parceria, em que coube a mim sugerir um arranjo para uma canção dele, SERRA VIDA, inscrita num festival local de música popular. A banda encarregada da interpretação não era muito afeita a sutilezas fora dos padrões de sua prática musical, mas, embora não correspondendo à expectativa do autor, o resultado felizmente não comprometeu a amizade.
Décadas mais tarde, um trecho da letra daquela mesma canção acometida de meu "arranjo" deu impulso inicial para adaptar uma velha composição à trilha de uma encenação teatral: a canção BANDEIRANTE. E a canção QUIET, bem como de certo modo o tema, alimenta ainda uma composição inacabada, SILENTÍSSIMO, imaginada para vozes a cappella.
A essa altura, entretanto, já fazia muito tempo que não tínhamos contato. Aceitando convite para se integrar a um empreendimento de familiares, ele mudara para o interior, e as ocupações nossas de cada dia foram traçando outros caminhos. Tempos depois, um perfil de rede social veio sinalizar que ele já teria falecido.
Outra ocasião, mexendo nas minhas bagunçadas estantes de arquivos digitais, deparei-me com o registro daquelas canções que Carlos me mostrara. E fui tomado por uma dúvida, uma preocupação comum a historiadores, que compartilho: será que os filhos sabem destas canções? E, se eventualmente sabem, possuem o registro em áudio?
Embora mal tivesse conhecido os filhos, lembrava dos nomes e passei a tentar localizá-los na internet, o que, então, já se tornara algo muito promissor, com os recursos mais eficientes de busca. E o contato foi retomado, a uma geração de distância.
À guisa de conclusão, reflito que Já falei, em outra oportunidade, sobre experiências pessoais que tive do velho ditado de que o mundo dá voltas. Não no sentido em que evoca situações e casos de acertos de contas, de dívidas a vinganças. Nada disso. Na ótica em que vejo a máxima, diz respeito a reencontros que fazem ligar dois momentos distantes no tempo, resgatando antigas conexões.
Foi o que aconteceu com o retorno que me foi possível realizar levando às mãos, e aos ouvidos, da nova geração esse "presente", palavra que tomo emprestada não apenas no sentido comemorativo, natalício, mas acrescentando a ideia da presentificação, de trazer para hoje o que não poderia, nem deveria, ficar perdido no passado.
PS. Outras postagens que referem Carlos Alberto Alves Novaes.
SILENTÍSSIMO (por preencher)
SINFONEMA (por preencher)
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