Eis o relatório do Auditor Nihil Ultra
Seguem apontamentos sobre vários lançamentos encontrados em registros mantidos pelo Guarda-Livros, que aludem à cidade de Curitiba, capital do Estado do Paraná.
CURITIBA Primeiramente, uma canção para canto e piano, escrita em 2004.
O texto é de poema homônimo de José Paulo Paes, poeta que estudou e viveu na capital paranaense em fins dos anos 1940.
Quanto à música, a parte do piano é extraída de uma peça solo para o instrumento, Pequenos Contrastes, criada em fins dos anos 1960 ou início da década seguinte, não há precisão cronológica.
A primeira hipótese é mais plausível. A melodia não encontra evidências de origem em composições anteriores. Certamente foi escrita especialmente para as palavras do poema. Supõe-se que o autor tenha conhecido o poema ao folhear uma coletânea de José Paulo Paes, em uma livraria curitibana, durante o ano de 2003. O texto faz várias alusões à realidade social, cultural e política da cidade, na época em que Paes ali viveu, alusões que oferecem dificuldades ao entendimento de quem desconhece a cena local. Um artigo do literato e crítico Wilson Martins, RENASCENÇAS CURITIBANAS, publicado no jornal Gazeta do Povo, edição de 08.09.1997, trazem informações que contextualizam o ambiente descrito pelo poeta, e do qual são transcritos alguns trechos mais adiante.
Em resumo, o poema Curitiba, de José Paulo Paes, faz alusões a nomes e cargos, que correspondem às seguintes pessoas, assinaladas por grifo nosso:
o interventor do estado Brasil Pinheiro Machado
era um pinheiro inabalável.
inabaláveis pinheiros igualmente
o secretário de segurança pública Valfrido Piloto
o presidente da academia de letras Oscar Martins Gomes
o dono do jornal De Plácido e Silva
o bispo
o arcebispo D. Alberto Gonçalves
o magnífico reitor Flávio Suplici de Lacerda
ah se naqueles tempos
a gente tivesse
(armando glauco dalton) Armando Ribeiro Pinto, crítico de cinema,
Glauco Flores de Sá Brito, poeta,
Dalton Trevisan, escritor
um bom machado!
O bispo, segundo Wilson Martins, entrou na história apenas pela figuração. A seguir, os que contextualizam o ambiente descrito no texto do poeta, com as referências também sinalizadas por grifo nosso:
Curitiba conheceu nos anos 40 uma pequena renascença literária, simétrica à que, florescendo em torno de Emiliano Perneta dos finais do século XIX até o seu falecimento em 1921, foi se desfazendo aos poucos depois do momento glorioso de sua coroação como Príncipe dos Poetas Paranaenses na grande celebração helênica do Passeio Público, em 1911. O clima de nostalgia espiritual que então se estabeleceu impediu que a renovação modernista surgisse no momento próprio, embora proclamada em 1926 por Jurandir Manfredini, mas recebida com risos escarninhos e paródias depreciativas diante da incredulidade geral.
Na década de 40, as juvenilidades auriverdes, congregadas em revistas e cafés, enfrentaram as senectudes tremulinas da era emiliana, enquanto um combatente chegado do espaço, o alagoano De Plácido e Silva, criando a Editora Guaíra em 1939, faria de Curitiba um dos centros editoriais mais ativos do país. No que aos autores locais se refere, ele privilegiava justamente os sobreviventes daquela época para sempre passada, enquanto publicava traduções de romances estrangeiros, sem excluir os latino-americanos de coloração esquerdista (como Dona Barbara, traduzido por Jorge Amado) e um Estande do Pensamento Social, que ia do ABC do comunismo, de Bukharin, a Nova mulher e a moral sexual, de Alexandra Kolantai, e à Origem do Capital, de Karl Marx (tudo isso em pleno Estado Novo!). Quanto aos autores nacionais, a Guaíra preferia os consagrados, como Mário de Andrade, Luís Martins ou Sérgio Milliet, além de uma enorme programação de ordem geral.
A polarização entre as senectudes tremulinas e as juvenilidades auriverdes não era tão radical nem tão absoluta quanto fazem crer as simplificações polêmicas, porque, se a Editora Guaíra, acolitada por Jorge Amado, tinha um catálogo de obras socialistas, Carlos Scliar, destacado pelo PCB para evangelizar os jovens intelectuais de Curitiba, ajudava a implantar nos dois campos antagônicos os pseudópodes da Boa Nova. Ao mesmo tempo, claro está, outros agitprop eram mandados pelo PCB para as tarefas mais sérias. Era, também, o momento dos cafés, não só sentados, mas ideológicos, por afinidades eletivas: se os revolucionários de 1930 preferiam o Café Gaúcho de saudosas reminiscências guerreiras, os integralistas reuniam-se no muito apropriadamente denominado Café Pátria, enquanto o esquerdismo generoso e ingênuo da nova geração estabelecera-se no Café Belas-Artes, hoje evocado pelos remanescentes com a nostalgia das revoluções juvenis (as literárias e as outras). Quanto aos emilianos, ficavam de pé à porta da Livraria Mundial, procurando assimilar por osmose as letras da Editora Guaíra.
Sem a repercussão nem a reputação nacional que seria mais tarde a de Joaquim (criada em 1946 por Dalton Trevisan), a revista O Livro (1939-1945), dirigida por José Cury, incansável fundador de revistas, foi por algum tempo o órgão da nova literatura, cabendo-lhe a distinção de lançar na vida literária o contista Armando Ribeiro Pinto com Os gatos, e os poetas Glauco Flores de Sá Brito (em processo de recuperação) e José Paulo Paes com O Aluno, agora reeditado pela Universidade Estadual de Ponta Grossa no programa de sua vigorosa atividade editorial. Vindo para Curitiba em 1944, atraído, como numerosos estudantes de outros estados, pela Universidade ainda não federalizada, José Paulo Paes iniciava com esse livro (publicado em 1947) a carreira que o situaria entre os nossos escritores de primeira linha, como poeta, tradutor e ensaísta. A cidade, escreve ele, dispunha de um "local privilegiado" para a prática das atividades que considerava como mais importantes: a literatura e a política. Era o Café Belas-Artes: "ponto de encontro de jornalistas, escritores, artistas plásticos, músicos, comunistas e pequenos corretores. [...] Além de mim, os membros mais assíduos dessa roda de amigos eram o poeta Glauco Flores de Sá Brito, o contista e crítico de cinema Armando Ribeiro Pinto e o jornalista e ensaísta Samuel Guimarães da Costa. Mais tarde, juntou-se a nós Eduardo Rocha Virmond, futuro crítico de arte, que disse haver sido o Belas-Artes "a melhor universidade que o Paraná jamais teve."
Havia uma derivação secundária, mas importante, no divisor de águas: os emilianos alimentavam uma visão sentimentalóide do Paraná, denominada de paranismo e simbolizada pelo pinheiro - lugar-comum obsessivo da subliteratura. Acontece que, a essa altura, as artimanhas do destino e as vicissitudes da política conduziram o historiador Brasil Pinheiro Machado à interventoria federal do estado. É preciso ter em mente o seu nome, as obsessões paranistas e o clima intelectual do momento para compreender as alusões do poema "Curitiba", que José Paulo Paes, anos mais tarde, incluiria na sua geografia sentimental. CURITIBA Capital do Estado do Paraná.
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