Um dia, fui solicitado por André Ribeiro a uma leitura crítica sobre alguns dos seus poemas.
Não recusei a incumbência da leitura, evidentemente. E não apenas pela amizade, mas também, dado o conhecimento prévio de outros escritos de sua lavra, pela certeza de que seria prazerosa.
Quanto à apreciação crítica solicitada, ainda que passando ao largo de tal postura, não pude me furtar a uma alusão histórica. Uma referência metafórica, no sentido de perceber naqueles textos ares de mistérios e sentidos ocultos associados ao ancestral Marcabru, figura da poesia medieval da Provença, cuja imagem me veio muito forte à mente. Um Marcabru contemporâneo, atualizando percepções de tempos idos, transfiguradas num trobar clus pessoal e íntimo.
O sentimento de que a analogia não era descabida senti fortalecido pelas incursões de André em outro campo de suas vivências artísticas: a música. E isso pela aproximação às culturas orientais, com maior aderência às tradições chinesas.
Ao cultuar e praticar o Guqin, instrumento musical de sete cordas tocado em disposição horizontal, cujo repertório vincula-se à estética e ao pensamento clássico chinês, esse trobar clus (trovar oculto) poético repercute, de modo mais intenso certamente, na linguagem musical, em que o discurso estético subordina-se a intenções extramusicais, mediante a adoção de gestos musicais codificados. Com certa semelhança à música indiana clássica, ou talvez ainda com maior rigor referencial.
Se conto esse episódio e falo do entorno artístico correspondente, é na verdade com a intenção de trilhar parcialmente, a partir de agora, um curioso texto autobiográfico do autor, em que me inclui no fluxo de seu trobar clus, ora trazendo-me à luz (da sala), ora deixando-me discretamente à sombra, por certo como cauteloso procedimento para me poupar em certas passagens hilárias.
Destaco, não integral nem rigorosamente dentro da sequência do texto original, alguns trechos de suas memórias sobre Gilberto Mendes, a partir de "... uma passagem que tive com ele, durante um dos encontros informais, realizados com frequência na casa de Gil Nuno Vaz e Inês Cruz, usualmente, iniciando às nove horas da noite, encerrando por volta das três horas da manhã."
Conta André: " De repente, fui convidado a uma festa na casa do poeta da cidade, onde Gilberto estaria. Meus pais se arranjaram para ter esse convite em mãos. (...) Encontrei-me numa sala ampla de duas peças com seres inéditos para mim, a maioria, no mínimo uns vinte anos mais velhos do que eu. (...) Para mim, aquilo se apresentava como uma reunião de um clube de artistas e intelectuais, já que as conversas giravam em torno de arte, cultura e política. (...) Longe das aulas formais de composição e análise nas salas de aula que frequentei, esses encontros teceram gradativamente o fio de meus desejos e os ‘porquês’ dessa e não daquela música. Numa palavra: deram sentido às minhas escolhas e direções na vida."
(...) Fui empurrado à frente por Inês Cruz, “Tua vez, vai lá!” Gilberto, sentado numa cadeira de balanço, “E então? Diga lá qual nome você escolhe?" Quiseram saber o meu codinome (...). Não sei qual idiotice me fez dizer “Berg”. Mas fui atacado pelo maestro Roberto, que do outro canto da sala gesticulava, revirando os olhos em minha direção: “Nã, Nã, Nã… Berg sou eu! Nem pense em tomar o meu nome”. A advertência fez o Gilberto intervir: “Então, será Kurt Weill!”
Aquela festa avançava na madrugada com auxílio de café e biscoitos de gengibre para nos manter acordados, papeando, até pelo menos às quatro da manhã, quando Gilberto, numa longa pausa introspectiva, num rompante trêmulo de um ancião, arrancou-se da poltrona voltando seus olhos para mim, e disse para que todos o ouvissem: “Olha, não seja assim, tão a sério! Eu nunca o fui. Subia a Serra para as aulas da Universidade por uma ninharia. Veja, eu sou da praia!” - E tornou a cair na cadeira. Essa última frase foi com certo vigor que a disse, acrescentando com os olhos já voltados ao poeta: “Seja como o nosso Karl May aqui que dá aulas de turismo sem ter saído do lugar.”
E em rodapé, esclarece que "Karl Friedrich May (1842–1912) foi um escritor alemão, conhecido por seus romances de aventura baseados no Velho Oeste americano. Seus principais protagonistas são Winnetou e Old Shatterhand."
No espírito do trobar clus, porém acrescentado do vezo jocoso e irreverente com que alguns associam Gregório de Matos a Marcabru, inclua-se no hilário da passagem narrada a invenção de um "convite em mãos" para uma "reunião informal".
PS. Para contrabalançar, acredito que seu Prelúdio a Uma Breve Canção, que gentilmente me dedicou, e penso que anterior à sua imersão na cultura chinesa, não tenha sido permeado pelo trobar clus. Ou sim?
Prelúdio a uma Breve Canção (André Ribeiro), com o pianista Antônio Eduardo.
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