Quase fim de tarde, o salão principal do Bar do Bardo completamente vazio, ambiente convidativo para ABZ percorrer mais alguns corredores da memória labiríntica e, quem sabe, achar uma nova canção ao longo do tortuoso trajeto em busca da saída. Pegou o violão, suspenso na parede atrás do balcão, e procurou uma cadeira sem braços. A primeira que viu estava numa mesa ao lado do piano. Sentou-se, colocou o violão sobre a perna esquerda, e esperou. Sua mente parecia vazia como o salão. Ficou assim, numa sensação que se prolongou por tempo indeterminado. De repente, uma imagem invadiu-lhe a mente, mas, antes que tomasse forma definida, o som do piano se fez ouvir. Não havia percebido que alguém se sentara ali. praticamente a seu lado, e começara a tocar; um acorde simples de do maior, um ritmo ternário andante. Instintivamente passou a tocar o mesmo acorde no violão. Logo em seguida, palavras foram surgindo sobre um curto motivo melódico, repetitivo.
Linda olhou seu vestido rasgado, seu braço partido, jogado no chão, suja do pó do porão, viu a casinha a seu lado, vazia, não tinha telhado, a menina sumiu, pela escada subiu, sem se voltar, sem mais voltar.
Sentiu que um refrão viria a seguir. Mas, tanto ele como o pianista, hesitaram. E pararam de tocar. Foi quando ouviu uma voz, vinda do fundo do salão.
- Então, mudou a história? Quem é Linda, afinal? Vai nos deixar curiosos?
"Vai nos deixar curiosos?". Como assim, "nós"?: Ergueu os olhos e, de repente, percebeu um salão cheio, para não dizer apinhado, de gente.
Vou nos deixar furiosos, pensou. E emendou o refrão, com o pianista acompanhando de imediato, como se já houvessem ensaiado inúmeras vezes a canção
Adê, Adê
Se vestiu de verde
Adê, Adê
E foi pro portão. Nova pausa, ABZ repousou o violão de volta sobre a perna esquerda. Com bastante vagar, voltou-se para as pessoas que lotavam o salão, saídas sabe-se lá de onde. - Quem é Linda? Vou contar, vou cantar para vocês quem é Linda. Falava muito espaçadamente, como se entre cada palavra fosse introduzido um hiato incomensurável de tempo. - Mas antes, vou contar sobre a menina. Essa que sobe a escada, e não mais retorna para Linda. Se já havia silêncio no salão, a partir de então parecia que só cabia um único som no mundo: a voz de ABZ. - Adê era uma moça misteriosa que o guarda-livros encontrou certa feita caminhando pelas calçadas internas do Canal 3. Na primeira vez, trocaram olhares. Na segunda, um curtíssimo cumprimento, olá, oi, ou coisa parecida, um sorriso. Na terceira oportunidade, que foi mais curta ainda, pressa dos compromissos, disseram-se os nomes. Mas, quando ela pronunciou o seu, Adê... um pesado e ruidoso veículo passou ao lado, e ocultou o final. Não houve o quarto encontro, nunca mais se encontraram. Assim, seu nome nunca foi descoberto. Contada essa história na época e mesmo anos depois, nunca se conseguiu saber-lhe o nome. Alguns achavam que era Ademilde, sobre a qual se referiam como a humilde Ademilde, que vinha de um bairro da periferia, onde moravam famílias de baixa renda. Para outros, tratava-se de Adelita, doce e meiga criatura que morava perto da praia, conhecida como dileta Adelita. E havia também os que acreditavam ser Adelaide, uma menina com ares de senhora, de pose quase aristocrática, tanto que a chamavam Lady Adelaide. Finalmente, havia aqueles que diziam ser esse mesmo o seu nome, Adê. Que, na verdade, era o som de A.D. (anno Domini), pois ela aparentava ser uma pessoa de época mais antiga, bem antiga, pelo anacronismo de sua saia pregueada e blusa bordada, além do semblante passadiço.
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