
A longa história da música ao pé da letra
(publicado no jornal A Tribuna de Santos de 24/03/1983)
O “Samba de Uma Nota Só”, de Antônio Carlos Jobim e Newton Mendonça, é o exemplo clássico de “música ao pé da letra”. A percepção é imediata, até para o leigo, de que a linha melódica comenta o texto, repetindo a mesma nota enquanto se fala que o samba tem como base uma nota só, ou realizando movimentos ascendentes e descendentes no momento em que o cantor diz se ter utilizado de toda a escala.
Augusto de Campos, no livro “Balanço da Bossa”, chama de “isomorfismo” a esse tipo de relação, ou seja, identidade entre forma (musical) e fundo (conteúdo verbal).
“Desafinado”, composição da mesma dupla e igualmente criada por João Gilberto no início da bossa nova, realiza semelhante interação ao introduzir soluções melódicas e harmônicas que resultavam dissonantes e “desafinadas”, ao ouvido musical da época.
Mas a preocupação de estabelecer ligações dessa natureza entre os signos verbal e musical vem de longa data. Talvez o mais antigo de “isomorfismo” seja o rondó “Ma fin est mon commencement”, de Guillaume de Machaut, que viveu no século XIV. Na peça, um trecho diz “meu fim é meu começo e meu começo meu fim”, a melodia que canta a segunda parte da expressão é a mesma da primeira parte, executada nota por nota de trás para a frente. O fim passa a ser o começo, e vice-versa. Além disso, as duas seções da composição se reproduzem três vezes, realizando o que é afirmado em outro trecho da letra.
O “isomorfismo” não é, entretanto, o único processo de compatibilização entre letra e música. A procura de vinculações com fundo psicológico dominou grande parte da criação musical da Renascença e do Barroco. No moteto “Dies Santificatus”, de Giovanni Pierluigi da Palestrina, a meloida vai do grava ao agudo para reforçar o sentido de ascensão a que se refere o texto. A “Paixão segundo São João”, de Bach, está repleta de passagens equivalentes.
A própria imitação de sons produzidos por seres e coisas não deixa de ser um tipo de identidade verbo-musical. O uso de onomatopéias associadas a elementos musicais, com caráter descritivo, tem sido o recurso mais comum. Em “La Guerre”, de Clement Jannequin (século XVI), o emprego reiterado de notas em bloco, de modo obsessivo, conduz a uma analogia com sons vocais que sugerem tambores, clarins, soldados em marcha. Em outra peça coral de Jannequin, “Les Cris de Paris” (os pregões de Paris), cria-se verdadeira ambientação, com as vozes sobrepondo-se umas às outras, confundindo-se, reproduzindo o entrelaçamento sonoro típico das feiras populares.
A aproximação do canto com a fala, prenunciada por esse tipo de ambientação, tem sido um campo fértil, em nosso século, de relacionamento entre texto e música. Já na segunda década, o compositor austríaco Arnold Schoenberg compunha um ciclo de canções chamado “Pierrot Lunaire”, em que a fala comum procurava se introduzir no canto clássico, empostado.
Na música popular brasileira, a valsa “Ciúmes sem Razão”, de João de Barro, em 1937, mostrava Orlando Silva executando passagens em que o canto era visivelmente influenciado, modificado pela introdução de melodias praticamente faladas. Em época mais recente temos o “Sinal Fechado”, de Paulinho da Viola, e mesmo obras como “Ouro de Tolo”, de Raul Seixas, ou a primeira parte do samba que consagrou Jair Rodrigues, aquele do “deixa que digam, que falem, que pensem”...
Atualmente, quem desenvolve essas possibilidades de forma mais interessante, na MBP, é o grupo Rumo. Com dois discos já produzidos por via independente (“Rumo” e “Rumo aos Antigos”), o conjunto tem composições que se caracterizam, entre várias coisas, por representar cenas coloquiais, uma curiosa conversa musical.
Mas isso é uma conversa que toma outros rumos, e fica para uma próxima oportunidade.

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