Virada de ano no Atlântico, estertores de 1923, dias passados da saída do Porto, entra 1924 em trabalho de parto. Pouco antes da meia-noite, o Alfaiate se afasta da festa, de passageiros e tripulantes, e vai ao convés, de onde lança ao oceano um mar de ansiedades, dúvidas de vida. Meio mês ainda a bordo do Bremen, de uma travessia em que a mente vai incansavelmente antecipando a vivência em solo brasileiro, procurando expandir, ir além das imagens dos familiares e locais exibidos nas poucas fotografias que lhe enviaram, junto com a última carta que recebera. Carta cheia de recomendações, ora em tom de advertência, ora como paternais conselhos, detalhando os cuidados que deveria ter durante a viagem de mar e ao chegar em terra. Os detalhes chegavam a especificar os trajes a usar, sugerindo que seria prudente viajar com as piores vestimentas que tivesse, duas ou três camisas velhas, o suficiente para, pelo menos, uma troca durante a travessia. Que já se mostrara insuficiente, pois todos já estavam imundos com o pó de carvão, todos com roupas e peles sujas e suadas. Também que trouxesse sapatos gastos. E que seria bom jogar os trapos fora, assim que chegasse. Isso o incomodara bastante, pois desde criança sempre fora muito zeloso com o vestuário, gostava de andar bem vestido, ainda que com roupas modestas. Poucas coisas o deixavam tão irritado como as calças curtas usadas na aldeia, que lhe davam uma incômoda sensação de vergonha, com aquelas aberturas para facilitar o uso fisiológico. Em sua cabeça infante, já pensava em como confeccionar trajes mais dignos, menos constrangedores. Retira do bolso interno do paletó um documento timbrado do Consulado de Portugal em São Paulo, um recibo de pagamento no valor de sete mil e quinhentos reis, feito por seu primo Manoel no dia 27 de agosto de 1920. Desdobrando e segurando forte o papel contra o vento, começa a reler a carta colada na borda esquerda do recibo, um texto que já conhece de cor, desde que a recebera havia três anos Carta de Chamada - Manoel Pinto Guedes, natural de Barqueiros, concelho de Mesão Frio, distrito de Vila Real, e residente nesta cidade de São Paulo, Brasil, com esta declaração autoriza seu primo José Pereira da Silva Junior, de 12 anos de idade, residente em Tresouras, concelho de Baião, distrito do Porto, a embarcar em Lisboa ou Leixões com destino ao porto de Santos, afim de vir residir em sua companhia nesta cidade, responsabilizando-se pelo seu sustento e educação. S. Paulo, 27 de agosto de 1920.
Sempre que sentia vontade, necessidade mesmo, de ler novamente aquelas palavras, procurava fazê-lo sem ninguém por perto, temeroso, depois que o primo recomendara cautela com estranhos, principalmente conversa fiada de mulheres a bordo, além de prudência com os gastos, entre as várias situações mencionadas na carta. Que não entregasse qualquer documento a ninguém que não fosse autoridade reconhecida e só quando obrigatória a exibição. Correria sério risco com a imigração, poderia ser envolvido em alguma situação ilegal, ou até ficar sem prova documental de sua condição de imigrante. Guias escritos para orientar os emigrantes confirmavam em parte as palavras do primo, e em parte o confundiam mais. A bordo não faça ruído, seja respeitoso, especialmente com as mulheres (e se elas o abordarem com conversa fiada?), não moleste os outros, cuide-se, lave-se, penteie-se, troque frequentemente de roupas, não jogue, não compre comida de outros passageiros, apenas o que é oferecido a bordo, nos dias de mar agitado não se exponha no convés, nas escadas, nas escotilhas, para evitar desgraças (até então a viagem tinha sido tranquila, sem sobressaltos), qualquer reclamação fale com o Real Comissário et cétera e tal.
Fica ali um bom tempo, só, mente livre, livremente isolada nos pensamentos. Prefere estar assim, apesar dos muitos portugueses a bordo, com os quais poderia conversar, disfarçar os temores. Falando com alguns, soube que já eram mais de um milhão a sair de Portugal nos últimos trinta anos, emigrando para os Estados Unidos e para o Brasil. No norte americano, a situação estava se tornando difícil para os imigrantes, com restrições e cotas de entrada de estrangeiros. No Brasil, pelo contrário, o governo estimulava a vinda de trabalhadores para o café, no campo, e para o comércio, nas cidades. Sabe que isso não traria sucesso, riqueza. Iria encontrar e passar por reveses, frustrações. Teria que ser forte, persistente. Pensa no que lhe haviam contado sobre histórias de patrícios que embarcaram para o Brasil. Das suas dificuldades ao aportar, descobrindo muitas vezes que suas bagagens haviam sido furtadas no porto de Santos e do Rio. Da vida extenuante nos campos, tão distante das promessas.e expectativas quanto próxima da que levavam nas aldeias. Desde que acabara o tráfico de escravos negros em meados do século passado e, principalmente, depois da abolição da escravatura no Brasil, há mais de trinta anos, uma escravidão branca nos campos passou a substituir a anterior. E, por fim, da chacota urbana que suportavam, alvos de anedotas enquanto buscavam sustento em miseráveis negócios de rua. É onde desembocava a rota dos caixeiros, na qual julga se encaixar, pela idade, pela região de onde vem e o trabalho futuro com familiares. Uma espécie de tradição e fado das famílias nortenhas, ato de desespero alimentado pela esperança de um negócio próprio, enfrentando a adversidade atrás de um balcão. De repente, a sensação de que alguém se aproxima arranca-o do absorto transe. Preocupado, procura dobrar discretamente o documento e colocá-lo de volta ao bolso do paletó, sem que o gesto se faça notar. Seus movimentos são sutis, como se continuasse alheio a tudo em volta dele. É tu que surge no convés, vindo em transiência do longínquo porto de Santos. Tu ainda te recupera do espanto de estar ali. Nem desconfia de como isso acontece. De que cada dobra da carta de chamada te fez percorrer cada camada que separa os dois espaços e tempos. Também ele não sabe que é autor de tua chamada. Sente apenas que tu está por perto. E tu nem percebe que ele dá conta de tua presença, tanto quanto tu dele. Ou que a única diferença é que tu sabe quem ele é. Tu o reconhece, enquanto para ele é a primeira vez que vai te ver, falar contigo e, longa conversa de convés, te ouvir.
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